segunda-feira, 21 de junho de 2010
domingo, 30 de maio de 2010
Análise_Em busca de Autonomia
A busca da autonomia
Somos paparicados a vida inteira e custamos a crer que temos o dever de sermos independentes. E não só o dever: faz parte do amadurecimento a busca pela verdadeira autonomia. Mas como alcancá-la?
Foi tudo rápido. Armado com um fuzil, o homem entrou no banco da frente, colocou o motorista do jipe sob sua mira e o jornalista norte-americano David Rohde, sentado no banco de trás, se viu como refém da ala mais linha-dura do exército taleban. Era novembro de 2008 e ele permaneceria sete meses e dez dias entre a vida e a morte.
Eu não conseguiria imaginar como reagiria na situação dele: dependente das decisões dos chefes da guerrilha, dependente de negociações internacionais que envolviam sua libertação, dependente dos humores dos carcereiros e das reações de seus companheiros de cela. Mas havia alguma coisa que David não tinha perdido: sua autonomia. Ao ser preso e conhecer o líder que se denominou Atiquillah, não hesitou em chorar e pedir clemência com o fi rme intento de comovê-lo. Não deu certo. Depois, contou como sempre procurou colocar os dois lados da questão Afeganistão/EUA nas suas matérias como correspondente do New York Times. A reação foi gélida. Contra-argumentou que não valia muita coisa e que 7 milhões de dólares era muito dinheiro pelo seu resgate. E que se, além disso, eles pedissem publicamente a liberação de presos afegãos em Guantánamo, Atiquillah podia esquecer a história. Melhor, sugeriu David, mais confi ante, era manter um possível acordo secreto e pedir a liberação de presos em Cabul, capital do Afeganistão. E, assim, de uma hora para outra, estava o repórter a negociar sua própria liberdade, já com os ouvidos bem mais interessados diante dele.
Os entendimentos se estenderam por meses e o jornalista, sempre atento às suas condições, acabou fugindo do cativeiro com uma corda que tinha conseguido esconder. Mas o que interessa nessa história eletrizante é que, mesmo na total dependência e sob a mira de um fuzil, podemos manter a autonomia. É ela que nos dá a estranha capacidade de se manter sobre os próprios pés mesmo em condições inimagináveis. David não era um ser independente naquela situação. Bem ao contrário: estava à mercê de tudo e de todos, mas continuou a ser autônomo. A independência pode facilmente se tornar arrogante e falastrona. A outra, a autonomia, se manifesta fi rme e sólida como uma rocha. Saber diferenciar uma da outra é essencial para aumentar a nossa confi ança e integridade e também para aprendermos a baixar a crista na hora da prepotência.
Seis pontos de autonomiaNesse mesmo ano, 2008, e nos quatro anos anteriores, o historiador mineiro Célio Turino também presenciou diferentes expressões de autonomia, só que cultural, nos mais longínquos recantos do Brasil. Eram todas iniciativas de populações muito carentes, mas ao mesmo tempo criativas e empreendedoras. Em Maceió, por exemplo, ele viu fi lmes projetados nas velas das jangadas, trabalho do Ponto de Cultura Ideário. No Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso do Sul, conheceu os índios yawalapitis, empenhados em elaborar dicionário, gramática e livros de histórias para que sua cultura e seu idioma não se perdessem para sempre. Isso sem falar no seu site, índios on-line, e na reconstrução da Casa de Música da aldeia, peça-chave nas reuniões dos integrantes da tribo. Também lá, Célio assistiu a fi lmes totalmente encenados, dirigidos e falados na língua dos kuikuros, huni-kunis, kaxinawás e ashaninkas.
Ele acompanhou números de equilibrismo de circo feitos por crianças no lixão de Maceió, a instalação de uma cidade cenográfi ca em Itatinga (CE) e, em Araçuaí (MG), inaugurou um cinema – único do Vale do Jequitinhonha –, recuperado pelos jovens da cidade. Na maior favela de Fortaleza, conheceu as atividades artísticas da Acartes, que tem o nome respeitável de Academia de Ciências e Artes de Pirambu e funciona numa casa estreitinha pintada de amarelo. Ali são apresentados trabalhos de escritores, poetas, dramaturgos, artistas, músicos, dançarinos. A casinha ainda abriga a Fábrica dos Sonhos – uma pequena indústria artesanal de maquinário para teatro e cinema. Eles fazem até gruas por ali. Visitou estúdios de hip-hop na periferia de Teresina e ouviu, encantado, as vozes do Coral Afro-Pomerano, que uniu, em Santa Catarina, culturas tão distintas quanto a dos pomeranos (originários de uma região entre a Alemanha e Polônia) e a dos quilombolas (descendentes de escravos, com ancestrais vindos da África). Maravilhou-se com a autonomia cultural do povo brasileiro. “Presenciei outro país nascendo”, diz.
Essas e outras histórias que envolvem a capacidade de resistência diante da adversidade e a criatividade, qualidades que ajudam a construir e reforçar o sentido de autonomia, ele conta em recém-lançado livro, Ponto de Encontro – O Brasil de Baixo pra Cima. Turino é também secretário do Ministério da Cultura e há cinco anos testemunha essa explosão incontida de criatividade que ocorre no país.
Esses exemplos nos dão a resposta para as qualidades que teremos de cultivar se quisermos reforçar nossa autonomia. Em primeiro lugar, a coragem de arriscar e superar obstáculos. Em segundo, a ajuda de quem pensa igual. Em terceiro, a criatividade diante do que se apresenta à nossa frente. Em quarto, o empreendedorismo. Em quinto, a resiliência, que é o jeito de sacudir a poeira, dar a volta por cima e arriscar de novo. Em sexto, enfrentar com tranquilidade o pavor de errar, fracassar, perder ou se prejudicar. E, à frente e no meio de tudo isso, o prazer. Porque não há dinheiro que pague o sorriso de satisfação que brota no rosto de alguém que exerça plenamente sua autonomia, inteireza e dignidade.
Dá um trabalhãoMas não é preciso demonizar a dependência. Ser dependente é uma condição natural. O desenvolvimento dos seres sempre inclui uma fase de dependência, quando eles próprios não são capazes de se sustentar. É normal que organismos em crescimento se nutram da força, do cuidado e da atenção de outros seres mais desenvolvidos e capazes. O problema é se viciar na dependência, mesmo quando estamos mais do que aptos e prontos para exercitar a autonomia.
O ser humano é o mamífero mais dependente da natureza: seu desenvolvimento leva anos porque não é só físico, mas também mental e emocional. “Uma pulga tem uma prontidão imensa para se tornar pulga. É fácil, pois suas capacidades são geneticamente herdadas. Um homem ou uma mulher precisam dos relacionamentos e do desenvolvimento da consciência para se tornar o que são: seres humanos. Exercitar toda sua potencialidade, ser capaz de escolher, arcar com as consequências de suas escolhas e manter sua autonomia são características do ser humano adulto. Para chegar a esse ponto, leva tempo”, diz a psicoterapeuta Sandra Taiar. E, cá entre nós, leva mais tempo ainda quando se torna cômodo e confortável não amadurecer. Porque dá trabalho ser responsável por si mesmo, e não é fácil se colocar na condição de risco e vulnerabilidade que faz parte da existência do ser maduro. Como bebês gigantes, preferimos nos deleitar numa sonhada condição uterina, em que o outro se responsabiliza e cuida de nós. Ficamos dependentes dos recursos externos, seja porque pensamos que não os temos, seja porque nos acomodamos com o que não demanda esforço. E o que empurraria, então, uma pessoa na direção desses desafi os? A natureza. Pássaros voam dos ninhos jovens, querem saborear suas potências, em todos os campos, para provar o prazer sem igual da autonomia e da liberdade.
“A vida nos empurra na direção do desenvolvimento, do amadurecimento e da emancipação. É um desenrolar natural”, diz Sandra. Seja numa relação a dois, seja dentro grupo ou numa sociedade, na condição de seres autônomos, nos tornamos inteiros. A relação se dá não mais pela carência do outro, mas por um desejo de compartilhar forças já plenamente desenvolvidas.
“Com 2 anos, a criança passa por uma fase que talvez evoque o primeiro desejo de independência do outro. “É a época do ‘é meu, não dou, sai daí’”, diz Sandra. “É uma fase egocêntrica: o outro é visto como uma ameaça”, diz. Acontece que muita gente parou emocionalmente por aí e acha que isso é independência. Sua noção de autonomia está circunscrita justamente ao “é meu, não dou, sai daí”. Espero que não seja o seu caso.
Independência não é levantar a crista e expulsar o outro da nossa vida. Esse é um desejo de autonomia pueril. Talvez a própria etimologia da palavra mostre o que ela é, pois está apoiada na palavra latina pendere, “se inclinar na direção de”. O ser independente está ereto, inteiro, não precisa se curvar na direção de ninguém. Isso não signifi ca que ele não possa se relacionar, ceder ou negociar. Só que, ao fazer isso, não perde a si mesmo. Mantémse inabalável sobre seus próprios pés – como na história do David, no começo do texto
Mas será que alguém em situações extremamente severas vai conseguir mesmo manter o desejo de ser autônomo? Tudo bem se estivermos com saúde e perfeitos. Mas se a gente for parar numa cama? Vamos continuar a exercer a autonomia? O romancista e roteirista de cinema Dalton Trumbo, um dos mais geniais autores norte-americanos do pré e pós-guerra, respondeu essa questão quando escreveu o livro Johnny Vai à Guerra, que ganhou o National Book Award, o mais alto prêmio literário norte-americano. Na obra, ele conta a história (baseada em fatos reais) de Joe, um soldado que perde todos seus membros após a explosão de uma bomba. Fica ainda sem ver, ouvir e falar e, com isso, perde também a capacidade de se comunicar com o mundo. O que lemos nas páginas de Johnny Vai à Guerra, um dos libelos pacifi stas mais densos já escritos na literatura, é a descrição dos fl uxos de consciência do soldado, suas memórias, sua avaliação da vida. Ele se torna apenas uma mente presa num corpo dilacerado e a única coisa que faz é pensar. Mesmo assim, ele ainda consegue manter sua autonomia, sua consciência. Constata-se, portanto, que ser autônomo é unicamente uma questão interna. Com esse exemplo, não dá mais para se enganar.
Digna resistênciaO próprio Trumbo se envolveu com a questão da autonomia em toda a sua vida. Comunista (na verdade, mais rebelde do que comunista, pois se cansou rapidamente das intermináveis reuniões do partido), presidente do temido Sindicato dos Roteiristas, ainda conseguia ser o profi ssional da sua área mais bem pago de Hollywood. Em 1947, foi preso por um ano por se recusar a depor na Câmara de Representantes dos Estados Unidos e delatar seus colegas, na terrível época do macarthismo. Teve seu nome incluído na lista negra de Hollywood e não conseguia mais trabalho em nenhum estúdio. Ele dizia: “Essa lista vai entrar em colapso porque é podre, imoral e ilegal”. Levou ainda alguns bons anos para que sua profecia se concretizasse.
Trumbo vendeu seu rancho e se mudou para o México. Vendia seus roteiros a preços de banana e sob pseudônimo – ganhou até dois Oscar, um atribuído a Ian McLelland Hunter, roteirista que serviu de fachada para ele no fi lme Roman Holiday (1953), e outro com o nome de Robert T. Rich, por The Brave One (1956). Os tempos fi caram difíceis. Na sua biografi a, constam inumeráveis cartas que ele dirigia a credores, bancos e instituições de crédito por falta de pagamento. Em compensação, dirigiu toda a sua força e capacidade para discutir temas como autonomia, liberdade, honra e dignidade. Escreveu o roteiro de Spartacus, sobre um escravo romano, de Exodus, sobre os hebreus escravizados no Egito, e de Papillon, o último prisioneiro da ilha do Diabo, detido injustamente. Mas talvez nenhum fi lme tenha tratado da dignidade humana de maneira tão profunda quanto The Fixer (1968), uma obra-prima dirigida por John Frankenheimer.
O enredo conta a vida de Jacov Bok, um judeu na Rússia czarista que é acusado de assassinar uma criança. Na prisão, ele conhece o promotor que deseja sua condenação, para servir como intimidação à crescente infl uência judaica. Trava-se, então, um duelo de gigantes, com as interpretações inesquecíveis de Alan Bates, como Jacov, e Dick Bogarde, como o promotor Grusbeshov. Aos poucos, fi ca evidente que Jacov não tem nada a ver com a história. O promotor passa a querer convencê-lo a pedir perdão às autoridades para que ele possa ganhar a liberdade. A grande questão é que Jacov, apesar de já ter a saúde debilitada, exige o julgamento – já que o acusaram, terão de provar sua culpa. “Eu não cometi nenhum crime. Eu não preciso de perdão. Quero um julgamento. Se você tentar me fazer sair sem um julgamento, estará me chamando de criminoso. Não! Agora você vai ter de me julgar”, diz Trumbo por meio das palavras de Jacov. Dessa forma, até a última cena, o roteirista discute o tema central da sua vida: a autonomia e a dignidade mantidas diante de uma acusação injusta.
A pedido de alguns amigos atores e cineastas, Dalton Trumbo e sua mulher conseguem voltar aos Estados Unidos. Ele escreve The Fixer e outros fi lmes já em território norte-americano. Porém, como o próprio Jacov, sua saúde é precária e ele morre de enfarto em 1976, aos 70 anos.
O exemplo de Trumbo é inspirador. Ele nos segreda que há muitas coisas pelas quais vale a pena lutar na vida e o nosso destino não precisa estar invariavelmente ligado ao desejo de querer se afundar numa poltrona e assistir um DVD.
Fonte: Vida Simples
Análise_Em busca de Autonomia
Negociando limites
Definir qual é o limiar de tolerância é hoje o ponto crucial de nossas relações. Porém, como avaliar a situação? Quando é mais indicado incluir o outro e aceitá-lo ou quando é melhor bater o pé?
Lidia Muniz é negra. Negra e loira, aliás, como a cantora norte-americana Beyoncé. Ao viajar no começo do ano para um congresso de terapeutas na Califórnia, o estado mais politicamente correto dos Estados Unidos, ela notou que muitas sorriam ao passar por ela, como querendo dizer: “Eu a aceito do jeito que você é. Por mais diferente que você possa parecer do que eu sou, ou do que eu gosto, está tudo certo”. Depois de 15 dias, esse comportamento supostamente gentil começou a lhe dar nos nervos. “Sei que sou diferente, fora do padrão, e que seria normal uma pessoa olhar para mim surpresa, até com certa hostilidade. Aceito esse risco. Mas era terrível suportar essa tolerância infinitamente condescendente que, no fundo, parecia sussurrar ‘olha, minha filha, tudo bem, você é maluca, mas eu, que sou bem legal e tolerante, vou aceitar sua excentricidade, desde que ela não invada os meus limites e você fique na sua, ok?’” Enfim, provavelmente um conveniente verniz social, tão raso que daria para raspar com a unha.
Difícil, não? Até a tolerância empostada pode ser um ato inconsciente de arrogância. Mesmo quando eu, você e talvez o pessoal da Califórnia achamos que estamos sendo tolerantes, podemos esconder debaixo do pano um baita complexo de superioridade e uma indisfarçável prepotência. Ou então, pior ainda, o eterno desejo de sermos sempre fofos, doces e certinhos como o ursinho Puff.
Por isso é que é bom a gente refletir mais profundamente sobre os limites da tolerância, quando ela é real e desejável, ou exagerada e falsa. Ou quando somos tolerantes com os outros e intolerantes conosco, até o ponto de a tolerância virar autoabuso. Ou ainda quando a intolerância fecha nossos olhares e atitudes e nos torna rígidos e inflexíveis. Essa é uma questão cada vez mais presente em nossas vidas. Não dá mais para passar por cima.
Tolerância é uma palavra ingrata na maioria das línguas latinas. Ela traz em seu bojo a ideia de que é preciso aguentar, suportar, enfim, tolerar alguma coisa porque não se tem outra saída. E, já que não tem jeito, já que não dá mesmo, então engolimos o sapo. Toleramos. O verbo, na sua negativa, é igualmente poderoso: “não tolero aquele fulano”, “não tolero que mexam nas minhas coisas”. Ele nos traz uma sensação de irritação, impaciência e até mesmo raiva com outra pessoa ou situação. A ideia é que um limite foi invadido, ultrapassado, e que fiquei louco da vida com isso. Então não tolero.
“Casa de tolerância”, ou bordel, num outro exemplo, é o lugar onde é possível ultrapassar todos os limites, onde tudo é tolerado, inclusive o sofrimento e a humilhação do outro. Vamos combinar, portanto, que, por causa dessa carga emocional, tolerância não é exatamente a palavra adequada para nos dar uma noção de amplidão, de abertura. Algo leve, prazeroso, acolhedor.
Talvez a melhor palavra para dar essa ideia de expansão de limites pessoais fosse abrangência. Eu abranjo, tu abranges, ele abrange. Abro os braços e o incluo como parte de mim mesmo. A primorosa expressão usada para designar o outro pelo povo kakinawá, da Amazônia, por exemplo, é txai. Ela significa amigo, companheiro, mas também “a outra metade de mim”. Txai é aquele que vai me completar e que, juntos, formaremos um só ser. Além de fazer parte de uma música de Milton Nascimento e Maurício Bastos, a palavra txai é a tolerância exercitada em seu melhor sentido: com o sentimento de que somos todos interdependentes. Sem salto alto, sem arrogância, reconhecendo no outro uma contraparte de mim mesmo
Diferente é a mãeReinaldo Bulgarelli, autor de Diversos Somos Todos, livro que trata exclusivamente do tema diversidade, escolheu o nome txai para sua pequena empresa de consultoria. Reinaldo trabalhou com crianças indígenas na Amazônia em projetos da Unicef, com o educador pernambucano Paulo Freire junto aos meninos de rua, enfim, passou a maioria dos seus 47 anos envolvido com inclusão social e educação. Mas é interessante conhecer onde e como germinou essa incrível aptidão. Foi em 1978, nas reuniões do movimento de juventude cristã que tinham lugar na igreja Nossa Senhora do Rosário, no largo Paissandu, no centro de São Paulo. Na época, a paróquia congregava uma grande comunidade negra. “Tinha 16 anos e era o único jovem branco por ali”, diz. “Mais do que aprender o que era ser negro, me conscientizei do que era ser branco: os privilégios e oportunidades que tinha, a diferença de tratamento que recebia da sociedade. Antes disso, não tinha a menor noção dessa diferença.”
O abismo que separava as duas realidades foi lição suficiente. Reinaldo resolveu dedicar o resto da vida para lutar pela tolerância à diversidade. “A gente sempre pensa que o diferente é o outro, que tenho de tolerar aquele que é diferente de mim. Esse é um grande engano. Cada um de nós é diferente de alguma maneira. A diferença que está no outro também está em nós, se mudamos o ponto de vista. Não há como nos excluir dessa condição de diversidade, que é própria do ser humano”, afirma Reinaldo.
Hoje, além de coordenador de cursos na Fundação Getúlio Vargas na área de responsabilidade social, ele trabalha com inclusão em empresas. Isto é, depois de sua passagem por elas, aumenta significativamente o número de mulheres em cargos de liderança, abrem-se novos setores que incluem deficientes, propõem-se metas mais efetivas de responsabilidade social. Otimista, Bulgarelli acha que no Brasil nos movemos em uma cultura que, no geral, é flexível e tolerante, para o bem e para o mal. “Vivemos numa sociedade que tem o mito da democracia racial, por exemplo. Se, por um lado, esse mito impede que enfrentemos de uma forma mais realista o que realmente acontece, ele também nos acena com a ideia de que é possível caminhar nessa direção. Há algumas sociedades mais rígidas e conservadoras em que esse tipo de pensamento sequer tem lugar”, diz
Mas também pode ocorrer o contrário: o excesso de tolerância que denuncia passividade, lassidão, a falta de resistência contra o abuso. É o que vamos ver a seguir.
A ira santaO excesso de tolerância pode gerar o abuso? João Pereira Coutinho, jornalista português que assina uma coluna no jornal Folha de S.Paulo sobre temas políticos e sociais, tem certeza que sim: “O excesso de tolerância pode levar ao pecado capital: tolerar o intolerante, ou seja, aquele que destrói nossa própria tolerância”.
Com palavras precisas, Coutinho delineia questões que sensibilizaram muitos filósofos: até onde é possível tolerar? Qual o princípio que deve nortear minha tolerância? “O princípio do pluralismo, isto é, a ideia de que existem valores e objetivos de vida múltiplos e nem sempre compatíveis”, diz Coutinho. Mas ele adverte: “Porém esse pluralismo não deve ameaçar os valores que eu considero centrais para uma existência digna. Ou seja: posso tolerar que os outros prefiram viver suas vidas de determinadas formas, desde que isso não ponha em causa minha vida e a vida dos outros”.
É o que o filósofo austríaco Karl Popper chama de “o paradoxo da tolerância”: não se pode tolerar o intolerável. “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância”, sentencia ele numa lógica irretorquível.
E o que é o intolerável? “É aquilo que nos causa dor, sofrimento, prejuízo, indignação, humilhação, e que geralmente é causado por um abuso indiscriminado de poder”, diz a psicoterapeuta Denise Ramos, do Laboratório Formativo do Ser, ligado à linha do psicólogo Stanley Kelleman. Esse é o limite: o que pode ser traduzido por “maus tratos” não deve ser tolerado. E há várias formas de reagir diante daquilo que não conseguimos tolerar. A mais comum é a raiva. “Ela é um alarme que nos acorda para um limite que foi ultrapassado, que nos desperta para uma situação que consideramos abusiva.” Mas nem sempre a raiva precisa, necessariamente, ser direcionada contra quem ultrapassou limite.“Às vezes isso acontece, numa reação imediata e legítima contra o abuso. Mas, no mundo adulto, a energia da raiva também pode ser usada como uma mola propulsora para mudar a si próprio e transformar a circunstância abusiva”, diz Denise.
Porém, mais um cuidado a tomar nesse terreno escorregadio. “Se não se deve tolerar tudo, pois seria destinar a tolerância à sua perda, também não se poderia renunciar a toda e qualquer tolerância para com aqueles que não a respeitam”, escreveu o filósofo francês André Comte- Sponville em O Tratado das Pequenas Virtudes. Isto é, não se pode ser justo só com os justos, generoso apenas com os generosos, misericordioso com os misericordiosos. Porque isso não é nem justo nem generoso nem misericordioso. “Tampouco é tolerante aquele que só o é com os tolerantes. Se a tolerância é uma virtude, como acredito e como geralmente se aceita, ela vale por si mesma, inclusive para com os que não a praticam”, afirma. A tolerância, portanto, não é um objeto de troca num mercado, ou espelho que reflete apenas quem a pratica. Tolerância é abrangência. Temos de nos tornar maiores do que somos para poder praticá-la.
Percepção errôneaQuanto mais nítida a noção de separatividade que tenho de alguém, menos eu sou capaz de ser tolerante com essa pessoa. Pois, afinal, eu sou uma, ela é outra. Para os budistas, enxergar as pessoas e coisas separadas umas das outras é como olhar para um tapete e ver apenas os fios individualmente, sem se dar conta de seu entrelaçamento. “Podemos dizer que a teoria da interdependência, da interconectividade entre os seres, é uma compreensão profunda da realidade. Ter esse ponto de visita reduz a estreiteza mental. Com a mente estreita é mais provável desenvolver apego, aversão”, diz o Dalai-Lama no livro A Sabedoria do Perdão, um saboroso relato sobre o cotidiano do líder tibetano feito por seu amigo, o erudito e bem-humorado professor Victor Chan.
O apego ao que achamos que está certo e a aversão por quem não concorda conosco, ou seja, a estreiteza mental, é a base da intolerância. Por isso é que o filósofo Comte-Sponville afirma que é preciso certa humildade para exercer a abrangência: sabemos que nossas crenças e valores são relativos, subjetivos, parciais. O que acreditamos ser verdade não é uma verdade absoluta, que serve em toda e qualquer condição, e para todas as pessoas. Por isso não podemos impô- la. Achar que o outro não pode pensar diferente é o retrato acabado da intolerância, do totalitarismo e do fundamentalismo. Também é por isso que a intolerância está sempre associada à arrogância e à prepotência. É melhor dar uma paradinha, quando achamos que sabemos o que é melhor para o outro. Pois ele tem o direito de não concordar.
Teoria e práticaGandhi foi absolutamente intransigente e firme em sua posição contra o domínio britânico na Índia. Porém, em vez de lutar abertamente, com ódio no coração e derramamento de sangue, preferiu exercitar a resistência não-violenta, baseada na mobilização social e na pressão política. Além de hábil e inteligente, ele tinha abrangência, isto é, uma clara visão de estadista. Entendeu que a resistência pacífica pode ser tão ativa e eficaz quanto uma revolução.
Um presidente do Brasil, Fernando Collor, foi deposto a partir da mobilização pacífica ensinada por Gandhi: os estudantes secundaristas espernearam, bateram o pé, e a sociedade voltou a atenção para eles. Ou seja, a intolerância pode ser combatida com firmeza de posições, manifestações de repúdio e uma pronta reação. E certamente essa não é a posição fofinha do ursinho Puff. É muito importante entender que tolerar não quer dizer ser passivo, indiferente, omisso. “Tolerar Hitler era ser seu cúmplice, pelo menos por omissão, por abandono, e essa tolerância já era colaboração”, acrescenta Comte-Sponville.
“A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência”, afirma claramente em seu primeiro parágrafo a famosa Declaração de Princípios sobre a Tolerância promulgada pela Unesco. É bom a gente não se confundir.
Essas grandes questões também podem ser vividas no dia a dia. Uma das pessoas que mais colaboraram para o estímulo à tolerância no Brasil é a professora Lia Diskin, uma das criadoras da Associação Palas Athena, um centro de referência (sediado em São Paulo) com relação ao estudo desses temas. Os maiores eventos relacionados à cultura de paz dos últimos 30 anos no país tiveram sua participação direta ou presença. Mas nada disso teria valor se ela não aplicasse esses conceitos em seu dia a dia. E aqui gostaria de dar meu testemunho pessoal. Com tolerância, Lia Diskin me recebeu para entrevistasrelâmpago, sabendo de meus prazos estreitos (uma realidade diária no jornalismo) e urgência, mesmo tendo sua mesa repleta de inúmeras questões pendentes. Pessoa ocupadíssima, Lia Diskin nunca deixou de responder meus e-mails, por exemplo, sobre o sentido mais profundo do meu nome budista. Não raro entrei em sua sala sorrateiramente a fim de roubar seu tempo para esclarecer dúvidas pessoais com relação ao cristianismo e ao budismo ou para comentar a fala mais profunda de um entrevistado recente. Mesmo quando foi firme – e quem trabalha com ela sabe o quanto Lia Diskin pode ser severa –, nunca deixou de mandar seu cálido abraço na última linha do e-mail. “Um grande amor pela humanidade, e sua consequente tolerância e compaixão por todos os seres, é capaz de mover cada um dos pequenos atos de uma pessoa no seu dia a dia. É a união final entre a teoria e a prática”, afirma a psicoterapeuta Denise Ramos. Se isso foi possível para Lia Diskin, que se crê tão falha, humana e cheia de defeitos, isso significa que a porta está aberta para cada um de nós.
Fonte: Vida Simples
Assinar:
Postagens (Atom)