domingo, 30 de maio de 2010
Análise_Em busca de Autonomia
A busca da autonomia
Somos paparicados a vida inteira e custamos a crer que temos o dever de sermos independentes. E não só o dever: faz parte do amadurecimento a busca pela verdadeira autonomia. Mas como alcancá-la?
Foi tudo rápido. Armado com um fuzil, o homem entrou no banco da frente, colocou o motorista do jipe sob sua mira e o jornalista norte-americano David Rohde, sentado no banco de trás, se viu como refém da ala mais linha-dura do exército taleban. Era novembro de 2008 e ele permaneceria sete meses e dez dias entre a vida e a morte.
Eu não conseguiria imaginar como reagiria na situação dele: dependente das decisões dos chefes da guerrilha, dependente de negociações internacionais que envolviam sua libertação, dependente dos humores dos carcereiros e das reações de seus companheiros de cela. Mas havia alguma coisa que David não tinha perdido: sua autonomia. Ao ser preso e conhecer o líder que se denominou Atiquillah, não hesitou em chorar e pedir clemência com o fi rme intento de comovê-lo. Não deu certo. Depois, contou como sempre procurou colocar os dois lados da questão Afeganistão/EUA nas suas matérias como correspondente do New York Times. A reação foi gélida. Contra-argumentou que não valia muita coisa e que 7 milhões de dólares era muito dinheiro pelo seu resgate. E que se, além disso, eles pedissem publicamente a liberação de presos afegãos em Guantánamo, Atiquillah podia esquecer a história. Melhor, sugeriu David, mais confi ante, era manter um possível acordo secreto e pedir a liberação de presos em Cabul, capital do Afeganistão. E, assim, de uma hora para outra, estava o repórter a negociar sua própria liberdade, já com os ouvidos bem mais interessados diante dele.
Os entendimentos se estenderam por meses e o jornalista, sempre atento às suas condições, acabou fugindo do cativeiro com uma corda que tinha conseguido esconder. Mas o que interessa nessa história eletrizante é que, mesmo na total dependência e sob a mira de um fuzil, podemos manter a autonomia. É ela que nos dá a estranha capacidade de se manter sobre os próprios pés mesmo em condições inimagináveis. David não era um ser independente naquela situação. Bem ao contrário: estava à mercê de tudo e de todos, mas continuou a ser autônomo. A independência pode facilmente se tornar arrogante e falastrona. A outra, a autonomia, se manifesta fi rme e sólida como uma rocha. Saber diferenciar uma da outra é essencial para aumentar a nossa confi ança e integridade e também para aprendermos a baixar a crista na hora da prepotência.
Seis pontos de autonomiaNesse mesmo ano, 2008, e nos quatro anos anteriores, o historiador mineiro Célio Turino também presenciou diferentes expressões de autonomia, só que cultural, nos mais longínquos recantos do Brasil. Eram todas iniciativas de populações muito carentes, mas ao mesmo tempo criativas e empreendedoras. Em Maceió, por exemplo, ele viu fi lmes projetados nas velas das jangadas, trabalho do Ponto de Cultura Ideário. No Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso do Sul, conheceu os índios yawalapitis, empenhados em elaborar dicionário, gramática e livros de histórias para que sua cultura e seu idioma não se perdessem para sempre. Isso sem falar no seu site, índios on-line, e na reconstrução da Casa de Música da aldeia, peça-chave nas reuniões dos integrantes da tribo. Também lá, Célio assistiu a fi lmes totalmente encenados, dirigidos e falados na língua dos kuikuros, huni-kunis, kaxinawás e ashaninkas.
Ele acompanhou números de equilibrismo de circo feitos por crianças no lixão de Maceió, a instalação de uma cidade cenográfi ca em Itatinga (CE) e, em Araçuaí (MG), inaugurou um cinema – único do Vale do Jequitinhonha –, recuperado pelos jovens da cidade. Na maior favela de Fortaleza, conheceu as atividades artísticas da Acartes, que tem o nome respeitável de Academia de Ciências e Artes de Pirambu e funciona numa casa estreitinha pintada de amarelo. Ali são apresentados trabalhos de escritores, poetas, dramaturgos, artistas, músicos, dançarinos. A casinha ainda abriga a Fábrica dos Sonhos – uma pequena indústria artesanal de maquinário para teatro e cinema. Eles fazem até gruas por ali. Visitou estúdios de hip-hop na periferia de Teresina e ouviu, encantado, as vozes do Coral Afro-Pomerano, que uniu, em Santa Catarina, culturas tão distintas quanto a dos pomeranos (originários de uma região entre a Alemanha e Polônia) e a dos quilombolas (descendentes de escravos, com ancestrais vindos da África). Maravilhou-se com a autonomia cultural do povo brasileiro. “Presenciei outro país nascendo”, diz.
Essas e outras histórias que envolvem a capacidade de resistência diante da adversidade e a criatividade, qualidades que ajudam a construir e reforçar o sentido de autonomia, ele conta em recém-lançado livro, Ponto de Encontro – O Brasil de Baixo pra Cima. Turino é também secretário do Ministério da Cultura e há cinco anos testemunha essa explosão incontida de criatividade que ocorre no país.
Esses exemplos nos dão a resposta para as qualidades que teremos de cultivar se quisermos reforçar nossa autonomia. Em primeiro lugar, a coragem de arriscar e superar obstáculos. Em segundo, a ajuda de quem pensa igual. Em terceiro, a criatividade diante do que se apresenta à nossa frente. Em quarto, o empreendedorismo. Em quinto, a resiliência, que é o jeito de sacudir a poeira, dar a volta por cima e arriscar de novo. Em sexto, enfrentar com tranquilidade o pavor de errar, fracassar, perder ou se prejudicar. E, à frente e no meio de tudo isso, o prazer. Porque não há dinheiro que pague o sorriso de satisfação que brota no rosto de alguém que exerça plenamente sua autonomia, inteireza e dignidade.
Dá um trabalhãoMas não é preciso demonizar a dependência. Ser dependente é uma condição natural. O desenvolvimento dos seres sempre inclui uma fase de dependência, quando eles próprios não são capazes de se sustentar. É normal que organismos em crescimento se nutram da força, do cuidado e da atenção de outros seres mais desenvolvidos e capazes. O problema é se viciar na dependência, mesmo quando estamos mais do que aptos e prontos para exercitar a autonomia.
O ser humano é o mamífero mais dependente da natureza: seu desenvolvimento leva anos porque não é só físico, mas também mental e emocional. “Uma pulga tem uma prontidão imensa para se tornar pulga. É fácil, pois suas capacidades são geneticamente herdadas. Um homem ou uma mulher precisam dos relacionamentos e do desenvolvimento da consciência para se tornar o que são: seres humanos. Exercitar toda sua potencialidade, ser capaz de escolher, arcar com as consequências de suas escolhas e manter sua autonomia são características do ser humano adulto. Para chegar a esse ponto, leva tempo”, diz a psicoterapeuta Sandra Taiar. E, cá entre nós, leva mais tempo ainda quando se torna cômodo e confortável não amadurecer. Porque dá trabalho ser responsável por si mesmo, e não é fácil se colocar na condição de risco e vulnerabilidade que faz parte da existência do ser maduro. Como bebês gigantes, preferimos nos deleitar numa sonhada condição uterina, em que o outro se responsabiliza e cuida de nós. Ficamos dependentes dos recursos externos, seja porque pensamos que não os temos, seja porque nos acomodamos com o que não demanda esforço. E o que empurraria, então, uma pessoa na direção desses desafi os? A natureza. Pássaros voam dos ninhos jovens, querem saborear suas potências, em todos os campos, para provar o prazer sem igual da autonomia e da liberdade.
“A vida nos empurra na direção do desenvolvimento, do amadurecimento e da emancipação. É um desenrolar natural”, diz Sandra. Seja numa relação a dois, seja dentro grupo ou numa sociedade, na condição de seres autônomos, nos tornamos inteiros. A relação se dá não mais pela carência do outro, mas por um desejo de compartilhar forças já plenamente desenvolvidas.
“Com 2 anos, a criança passa por uma fase que talvez evoque o primeiro desejo de independência do outro. “É a época do ‘é meu, não dou, sai daí’”, diz Sandra. “É uma fase egocêntrica: o outro é visto como uma ameaça”, diz. Acontece que muita gente parou emocionalmente por aí e acha que isso é independência. Sua noção de autonomia está circunscrita justamente ao “é meu, não dou, sai daí”. Espero que não seja o seu caso.
Independência não é levantar a crista e expulsar o outro da nossa vida. Esse é um desejo de autonomia pueril. Talvez a própria etimologia da palavra mostre o que ela é, pois está apoiada na palavra latina pendere, “se inclinar na direção de”. O ser independente está ereto, inteiro, não precisa se curvar na direção de ninguém. Isso não signifi ca que ele não possa se relacionar, ceder ou negociar. Só que, ao fazer isso, não perde a si mesmo. Mantémse inabalável sobre seus próprios pés – como na história do David, no começo do texto
Mas será que alguém em situações extremamente severas vai conseguir mesmo manter o desejo de ser autônomo? Tudo bem se estivermos com saúde e perfeitos. Mas se a gente for parar numa cama? Vamos continuar a exercer a autonomia? O romancista e roteirista de cinema Dalton Trumbo, um dos mais geniais autores norte-americanos do pré e pós-guerra, respondeu essa questão quando escreveu o livro Johnny Vai à Guerra, que ganhou o National Book Award, o mais alto prêmio literário norte-americano. Na obra, ele conta a história (baseada em fatos reais) de Joe, um soldado que perde todos seus membros após a explosão de uma bomba. Fica ainda sem ver, ouvir e falar e, com isso, perde também a capacidade de se comunicar com o mundo. O que lemos nas páginas de Johnny Vai à Guerra, um dos libelos pacifi stas mais densos já escritos na literatura, é a descrição dos fl uxos de consciência do soldado, suas memórias, sua avaliação da vida. Ele se torna apenas uma mente presa num corpo dilacerado e a única coisa que faz é pensar. Mesmo assim, ele ainda consegue manter sua autonomia, sua consciência. Constata-se, portanto, que ser autônomo é unicamente uma questão interna. Com esse exemplo, não dá mais para se enganar.
Digna resistênciaO próprio Trumbo se envolveu com a questão da autonomia em toda a sua vida. Comunista (na verdade, mais rebelde do que comunista, pois se cansou rapidamente das intermináveis reuniões do partido), presidente do temido Sindicato dos Roteiristas, ainda conseguia ser o profi ssional da sua área mais bem pago de Hollywood. Em 1947, foi preso por um ano por se recusar a depor na Câmara de Representantes dos Estados Unidos e delatar seus colegas, na terrível época do macarthismo. Teve seu nome incluído na lista negra de Hollywood e não conseguia mais trabalho em nenhum estúdio. Ele dizia: “Essa lista vai entrar em colapso porque é podre, imoral e ilegal”. Levou ainda alguns bons anos para que sua profecia se concretizasse.
Trumbo vendeu seu rancho e se mudou para o México. Vendia seus roteiros a preços de banana e sob pseudônimo – ganhou até dois Oscar, um atribuído a Ian McLelland Hunter, roteirista que serviu de fachada para ele no fi lme Roman Holiday (1953), e outro com o nome de Robert T. Rich, por The Brave One (1956). Os tempos fi caram difíceis. Na sua biografi a, constam inumeráveis cartas que ele dirigia a credores, bancos e instituições de crédito por falta de pagamento. Em compensação, dirigiu toda a sua força e capacidade para discutir temas como autonomia, liberdade, honra e dignidade. Escreveu o roteiro de Spartacus, sobre um escravo romano, de Exodus, sobre os hebreus escravizados no Egito, e de Papillon, o último prisioneiro da ilha do Diabo, detido injustamente. Mas talvez nenhum fi lme tenha tratado da dignidade humana de maneira tão profunda quanto The Fixer (1968), uma obra-prima dirigida por John Frankenheimer.
O enredo conta a vida de Jacov Bok, um judeu na Rússia czarista que é acusado de assassinar uma criança. Na prisão, ele conhece o promotor que deseja sua condenação, para servir como intimidação à crescente infl uência judaica. Trava-se, então, um duelo de gigantes, com as interpretações inesquecíveis de Alan Bates, como Jacov, e Dick Bogarde, como o promotor Grusbeshov. Aos poucos, fi ca evidente que Jacov não tem nada a ver com a história. O promotor passa a querer convencê-lo a pedir perdão às autoridades para que ele possa ganhar a liberdade. A grande questão é que Jacov, apesar de já ter a saúde debilitada, exige o julgamento – já que o acusaram, terão de provar sua culpa. “Eu não cometi nenhum crime. Eu não preciso de perdão. Quero um julgamento. Se você tentar me fazer sair sem um julgamento, estará me chamando de criminoso. Não! Agora você vai ter de me julgar”, diz Trumbo por meio das palavras de Jacov. Dessa forma, até a última cena, o roteirista discute o tema central da sua vida: a autonomia e a dignidade mantidas diante de uma acusação injusta.
A pedido de alguns amigos atores e cineastas, Dalton Trumbo e sua mulher conseguem voltar aos Estados Unidos. Ele escreve The Fixer e outros fi lmes já em território norte-americano. Porém, como o próprio Jacov, sua saúde é precária e ele morre de enfarto em 1976, aos 70 anos.
O exemplo de Trumbo é inspirador. Ele nos segreda que há muitas coisas pelas quais vale a pena lutar na vida e o nosso destino não precisa estar invariavelmente ligado ao desejo de querer se afundar numa poltrona e assistir um DVD.
Fonte: Vida Simples
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