sexta-feira, 26 de março de 2010

Análise_Escuta Aqui


Escuta aqui


Antes de tomar mil comprimidos, repare no que seu organismo está querendo dizer

Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia. Sífilis, ciúme, asma, cleptomania. Catapora, culpa, cárie, cãibra, lepra, afasia. E o pulso ainda pulsa. Propositadamente agonizante, a música dos Titãs incomoda. Afinal, não é agradável falar das nossas chagas. Sobretudo quando elas estão colocadas, assim, no mesmo saco as do corpo e as da mente. Pois esta reportagem pretende falar justo delas, das doenças. A idéia não é aborrecer você, muito pelo contrário. É tentar mostrar que existem formas bem positivas de olhar para as moléstias que nos acometem elas podem, inclusive, ser grandes aliadas na descoberta de coisas que até então você não sabia sobre si mesmo. E, quem sabe, ao terminar de ler esta matéria, você estará assobiando a canção por aí, sem torcer o nariz.

Primeiro, um incômodo

É chato, sim, ficar doente, você tem razão. E como é. Dói, cansa, tira a gente da ordem. Ninguém gosta de ficar mal, embora todo mundo já tenha ficado assim algum dia.

Quando você está com dor de cabeça, por exemplo, toma correndo um comprimido, certo? Os analgésicos foram inventados justamente para nos aliviar da dor e salve os analgésicos! Mas você há de convir que essas pílulas mágicas não levam seu problema embora. Elas apenas o camuflam. Parar de doer não significa curar.Uma boa comparação é pensar no seu carro. Quando acende uma luzinha no painel,é sinal de que algo não vai bem. Inconveniente isso, não? É preciso parar o carro, interromper o passeio e descobrir por que raios a luzinha está acendendo ela está chamando sua atenção para que você faça perguntas, investigue o que há de errado. Se um mecânico desavisado simplesmente cortar a ligação elétrica do painel, o problema parecerá solucionado. A luz apagou.Mas, com certeza, poucos metros adiante seu carro vai parar. E, pior, não haverá nenhum sinal para avisar. Nosso corpo funciona mais ou menos assim guardadas as devidas proporções, lógico. Tomar um remédio sem procurar descobrir a origem do problema é como desligar a luzinha do painel. Provavelmente, a pane vai voltar a aparecer mais tarde e, talvez, agravada. Portanto, um primeiro ponto a ser considerado é que a dor de cabeça ou qualquer outro mal-estar que você sinta é um sintoma, e não a doença. Todo sintoma age sempre como um sinal, um transmissor de informação.

Somos um só

Mas de que forma podemos desmontar esse motor e chegar à causa do acender das luzes no painel? Para todos os médicos, sem distinção de orientação, raça ou credo, doença significa um desequilíbrio entre o organismo e um agente agressor, que pode ser externo ou interno, ou seja, pode estar fora ou dentro de você.

Primeiro, seria bom tentar olhar para a parte de dentro até porque o que está fora é sempre mais fácil de enxergar.É só fazer um teste, rapidinho. Responda sem pensar: você ficou gripado porque foi surpreendido por um vírus inconveniente que estava pairando no ar,fora de você,ou porque seu sistema imunológico estava baixo depois de uma noite mal dormida e, por isso, ficou mais vulnerável ao vírus? Bem mais simples pensar que o agressor estava fora, não é? E até estava, sim. Mas é importante lembrar que não foi só isso.Adoecemos por uma série de fatores interligados, que levam em conta nossa carga genética, nossos hábitos construídos ao longo de uma vida e até mesmo a forma como lidamos com as emoções se não fosse assim, como explicar que,entre cinco pessoas respirando o mesmo ar, só você ficou gripado?

Isso não é conversa para boi dormir. Um estudo da Universidade de Stanford, na Califórnia, traduziu em números as causas das moléstias humanas: 50% da saúde ou do bem-estar de uma pessoa dependem do estilo de vida que ela leva o que inclui o fator emocional , 20% das características genéticas, 18% do meio ambiente e 10% da assistência médica. Ou seja, antes de culpar alguém por aquela dor de estômago, que tal começar por avaliações mais simples: eu almoço todo dia no horário certo? O que estou comendo? Tenho dormido o suficiente? Mantenho uma boa relação com eus colegas de trabalho? Ando a pé sempre que posso? Resolvo meus conflitos na conversa ou escondo tudo dentro de mim, num lugar onde nem eu mesmo posso achar?

O exercício de olhar para o que acontece dentro de nós é mais difícil. Um bom começo é pensar que nosso organismo nesse ponto é bastante diferente do carro de que falamos no início ele não funciona por partes, mas sim como um todo, como um sistema comunicante. Pifou aqui, repercute ali, prejudica acolá. Isso inclui nossa mente lembre-se de que também ela é parte do nosso organismo. E a mente responde a estímulos, emoções, sentimentos, além de guardar nossa personalidade, que foi composta por toda uma história de vida. Aquilo a que chamamos mente é uma coleção de processos biológicos. E, dado que esses processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico, afirma o neurologista português Antonio Damásio, autor do livro O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, em que põe em xeque a teoria defendida pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650), que separava os sentimentos da razão humana.

Visão milenar

Constatar a união entre mente e corpo está longe de ser novidade. Bota longe nisso, coisa de mais de 5 mil anos atrás. Nessa época, os chineses criavam o fundamento de sua medicina. Segundo uma antiga lenda oriental, há cerca de 18 mil anos havia um grande ovo no Universo e lá morava uma pessoa.Um dia, essa pessoa teria dado um soco forte na casca do ovo, quebrando-a. O material contido teria se dividido em duas partes: uma quente e leve que subiu formando o céu, chamada yang, e uma fria e pesada que desceu formando a água e a terra, chamada yin. Desde então, todos os fenômenos da natureza aconteceriam a partir das forças opostas e complementares yin e yang, inclusive a vida e o homem.

A medicina tradicional chinesa acionou essa filosofia e considerou o corpo duas partes ligadas,porém opostas. Os órgãos vitais são yin e suas funções são yang. Os chineses acreditam ainda que há canais distribuídos ao longo do corpo, os meridianos, por onde circula a energia vital, chamada chi (pronuncia-se tchi). O desequilíbrio dessa energia pode ser causado por diversos fatores, entre eles a emoção. Os mestres chineses, há mais de 20 séculos, perceberam que perturbações mentais poderiam tornar anormal o comportamento cognitivo e as funções fisiológicas dos órgãos internos. Do mesmo modo, um doente com alteração de um órgão poderia sofrer, em decorrência disso, distúrbios emocionais, diz o médico chinês Hong Jin Pai, em seu livro Acupuntura: de terapia Alternativa a Especialidade Médica. Nesse caso, não se sabe o que vem primeiro, o ovo ou a galinha.

Na mesma época, não muito longe da China, os indianos erguiam os pilares do ayurveda, que prega a existência de cinco elementos na composição do Universo: espaço, ar, fogo, terra e água. Por sua vez,a medicina ayurvédica propõe três principais constituições psicofísicas, os chamados doshas, regidos por dois desses cinco elementos.Cada dosha tem sua tendência ao desequilíbrio, sempre físico e emocional. Quem tem predominância do dosha Pitta,por exemplo, regido pela água e pelo fogo, tem um biotipo nem magro nem gordo. Tem tendência a ser irritado, de pavio curto,por isso pode sofrer de gastrite e úlcera, diz Aderson Moreira da Rocha, clínico geral e presidente da Associação Brasileira de Ayurveda. De tanto padecer de insônia e problemas intestinais, a professora de ioga Rebeca Markus resolveu procurar a medicina ayurvédica. Antes, lançou mão da alopatia e atribuiu o fracasso de seu tratamento na época à fragmentação.Estava com quatro médicos diferentes, fazendo tratamentos paralelos. Cada médico olhava para um pedacinho,um nem sabia o que o outro receitava, diz Rebeca, que só conseguiu se recuperar quando passou para um tratamento de tradição milenar que incluía mudança de hábitos e levava em conta seus diferentes estados de ânimo.

Tratamento de grego

Parece que a idéia de que corpo e emoção são farinha do mesmo saco atravessou os tempos.Hipócrates,o pai da medicina ocidental, em 400 a.C. já cansava de falar no assunto. Um bom exemplo é a ligação que ele fazia entre problemas do fígado e a depressão.Um ujeito que se mostrava triste e apático deveria ser tratado do fígado, em primeiro lugar. Tanto é que a palavra melancolia vem do grego, e sua raiz quer dizer bílis negra.Hoje em dia algumas linhas da medicina continuam trabalhando dentro dessa proposta de tratamento, como a homeopatia e a antroposofia esta última em especial.

A palavra soma vem do grego e significa corpo. Por isso, toda vez que falamos em algo somático estamos nos referindo a ele. Já psicossomático é algo pertencente ou relativo aos domínios orgânico e psíquico não é frescura, como muitos pensam.Tendo em vista que corpo e mente caminham de mãos dadas, dá para dizer que todas as doenças são psicossomáticas. É lógico que nem tudo depende só da mente. Existem fatores genéticos, hereditários, ambientais. Mas nada age sozinho. Ninguém é só corpo ou só mente, lembra José Atílio Bombana, psiquiatra e psicanalista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), coordenador do Programa de Atendimento e Estudos sobre Somatização.

Visto assim, fica até difícil dizer onde separar consciência e físico. O corpo é nosso primeiro universo.Ele nos concebe, abriga, registra as primeiras impressões que temos do mundo: cheiros, sabores, luzes, sons, calor, frio. Nele se constrói uma história marcada por sensações, movimentos, percepções e traços do encontro com o desconhecido do mundo, afirma Rubens Marcelo Volich, psicanalista e professor do curso de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo. É o corpo, ainda, o último reduto ao qual nos recolhemos nos momentos de dificuldade, tristeza, desamparo.

É dessa história escrita no corpo que trata a psicoterapeuta Maria Christina Freire no livro O Corpo Reflete o seu Drama: Somatodrama como Abordagem Psicossomática. A idéia é que, da mesma forma que temos lembranças guardadas na mente, também temos memórias registradas no corpo. Quer ver? Você lembra quando caiu na escola e ralou o joelho todo? Não? Mas seu joelho lembra. Se você machucá-lo de novo, verá. É uma memória dos sentidos, das sensações. Adoecer é uma possibilidade de entrar em contato com aquelas sensações que vão se inscrevendo em nossa memória corporal desde que estamos na barriga da mãe. Ao trazer à tona essas experiências novamente, você tem a chance de rever fatos, reestruturá-los e assim abrir um novo caminho para sua vida, afirma Maria Christina.

A doença como aliada

Se corpo e mente funcionam juntos e os sintomas são sinais de desequilíbrio, então de que forma podemos encarar a doença? Por mais estranho que possa parecer, o adoecimento é a melhor coisa que a pessoa poderia produzir. Trata-se de uma tentativa do organismo de recuperar o equilíbrio perdido. É uma forma de organização, de colocar a casa em ordem. Por isso, a doença não é uma inimiga, diz Rubens Volich.

O próprio Hipócrates defendia a idéia de que a doença não é apenas sofrimento, é também instrumento, levando em conta o potencial positivo da enfermidade. Os médicos e psicoterapeutas alemães Rüdiger Dahlke e Thorwald Dethlefsen, autores de A Doença como Caminho, vão ainda mais longe.O sintoma é um grande companheiro que nos possibilita descobrir aquilo que nos falta. Ele é um professor que nos ajuda a tomarmos cada vez mais consciência de nós mesmos, dizem. Para eles, devemos olhar para todas as nossas doenças, ou melhor, para os sintomas que nos aparecem, como uma forma que nosso organismo encontrou de nos mostrar uma série de conflitos não solucionados. Cada sintoma seria uma espécie de materialização daquilo que nossa consciência não consegue ver aqueles sentimentos que todos temos, mas que não assumimos nem em um terreno baldio, altas horas da noite. Como inveja, raiva, ciúme. Todo mundo tem, mas é difícil admitir numa boa. Daí, dizem os médicos alemães, viria o sintoma para apontar que um deles está tomando conta de você. Olhando para ele, tirando-o da sombra e trazendo-o para a consciência, o sintoma deixaria de ter razão para existir.

Não se sinta culpado

Difícil pensar assim quando estamos padecendo de algum mal, não é? Fica até parecendo que o doente teria culpa por estar nesse estado.Aquela velha máxima de acusar o sujeito ansioso por ter criado uma úlcera. Temos participação nas nossas doenças, mas isso não ocorre no sentido consciente, ou seja, responsável. Não foi você que escolheu determinada doença, foi seu inconsciente. E isso você não controla, afirma Nairo de Souza Vargas,professor do departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Por isso, uma boa saída seria não ficar brigando com a doença muito menos com você mesmo e sim pensar no que ela quer dizer. Se você está doente é porque esse é um estado do ser humano, que, como já deve ter percebido, é imperfeito por natureza. A doença é uma expressão da nossa imperfeição, portanto, um acontecimento inevitável, escrevem Dahlke e Dethlefsen.

Sendo assim, o que está ao nosso alcance? O que podemos fazer para recuperar a saúde quando somos acometidos por uma moléstia? Uma avaliação de hábitos, estilo de vida e de relacionamento com o mundo pode cair bem. Não é só por atitudes que nos expressamos. O corpo também expressa nossos traços. Se meu estômago dói quando estou nervoso, ele está mostrando um pouco da minha personalidade. Por meio do meu soma, estou expressando minhas angústias, diz o médico Nairo de Souza Vargas. Em outras palavras,parece que nosso corpo fala e fala pelos cotovelos. Portanto, se o pulso ainda pulsa, o negócio é não se fazer de surdo e ouvir as coisas importantes que ele tem a dizer.

PARA SABER MAIS

Livros

A Doença como Caminho Uma Visão Nova da Cura como Ponto de Mutação em que um Mal se Deixa Transformar em Bem, Rüdiger Dahlke e Thorwald Dethlefsen, Cultrix

Psicossomática de Hipócrates à Psicanálise, Rubens M. Volich, Casa do Psicólogo

O Erro de Descartes Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Antonio Damásio, Companhia das Letras

Acupuntura: de Terapia Alternativa a Especialidade Médica, Hong Jin Pai, Ceimec

O Corpo Reflete o seu Drama: Somatodrama como Abordagem Psicossomática, Maria Chistina Freire, Ágora



Fonte: Revista Vida Simples

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